Há exatos 70 anos, o jornal carioca O Globo sairia às ruas, em edição memorável, trombeteando reprimendas sobre o que chamou de “as fábricas do vício e do crime”.
Tratava-se dos luxuosos cassinos do Rio de Janeiro, frequentados pela alta sociedade. Era 29 de abril de 1946, em um Brasil recém-saído do Estado Novo.
Em letras garrafais, a reportagem intitulada de “Uma viagem noturna ao mundo da batota”, revelava em detalhes as operações das casas de jogos na então capital federal. A ostentação dos grandes salões tomados por homens de paletó e mulheres em vestidos longos estampava a capa. Pilhas de notas e as exuberantes roletas não ficaram de fora. Pela primeira vez, imagens de um cassino em pleno funcionamento eram publicadas em um jornal. O cenário: o luxuoso Cassino da Urca, onde já se apresentaram Carmen Miranda e Josephine Baker.
Não tão longe dali, no Palácio da Guanabara, Dona Santinha — primeira-dama do recém-empossado presidente da República Eurico Gaspar Dutra —, esfregava a estapafúrdica reportagem do jornal O Globo na cara do general. Religiosa ortodoxa e ligada à ala mais conservadora da Igreja Católica, à época, Dona Santinha não só fechava o cerco para manter o presidente longe dos cassinos como também pregava o fim dos “antros do pecado”, Brasil afora.
Ainda que carrancudo, o presidente militar não resistiria à pressão da primeira-dama.
No dia seguinte, Eurico Gaspar Dutra, assinaria o decreto-lei 9.215 de 1946, proibindo a prática ou exploração de jogos de azar em todo o território nacional. Com efeito, fecharia as portas dos 70 cassinos que funcionavam no país. No apagar das luzes, milhares de brasileiros perderiam seus empregos e dezenas de municípios viram seus orçamentos minguarem — a exemplo de Araxá, que abrigou um dos maiores cassinos do país, no memorioso Grande Hotel de Araxá.
Chegava ao fim, no entanto, a Era de Ouro dos cassinos no Brasil, inaugurada em 1933 por um dos mais entusiastas e notáveis jogadores do país, Getúlio Vargas.
De lá pra cá, a clandestinidade imperou.
Segundo dados do Boletim Novidades Lotéricas (BNL), hoje, 20 milhões de brasileiros jogam o jogo do bicho. Existem 350 mil pontos de vendas Brasil adentro.
Veríssimo bem definiu: “o homem é o único animal que joga no bicho”, está cravado na cultura brasileira e jamais acabará.
Enquanto isso, o Estado perde a chance de arrecadar. São R$ 12 bilhões ao ano sonegados, de modo que o Tesouro Nacional, esvaziados pela recessão, não vêem nem a cor dessa dinheirama.
Bem que Legislativo propôs regulamentar, há alguns anos.
Não contavam, portanto, com o envolvimento de um homem de Lula — o assessor do Planalto Waldomiro Diniz —, com o repasse de propinas oriundas do submundo do jogo do bicho, no financiamento de campanha do PT. Com efeito da CPI dos Bingos, em 2004, a questão dos jogos no Brasil passaria ao largo de qualquer discussão séria desde então.
Como um ranço da era esquerdopata, jogo e corrupção passariam a ser sinônimos.
Mais de uma década passou.
Nova crise e os jogos voltaram para linha de frente. No entanto, não se trata de apenas uma crise, mas da pior crise econômica da história política do país.
Sabe-se que o presidente interino da República, Michel Temer, é simpatizante do tema; e, ao menos dois ministros já declaram a favor da volta dos jogos no Brasil. Chamam-na de uma nova CPMF.
Vamos aos números: na última semana a equipe econômica do governo Temer calculou um rombo de R$ 170 bilhões no orçamento de 2016. Concluíram que, ao regulamentar os jogos, R$ 20 bilhões que são escoados anualmente para o estrangeiro e para os bueiros da sonegação poderiam ser revertidos para os cofres públicos.
Quem não joga no Brasil, joga no exterior. Decerto é que o dinheiro não fica aqui. Ademais, dos 194 países que compõem a Organização das Nações Unidas (ONU), 156 têm jogos liberados.
Lá fora as cartas estão sendo postas à mesa; os dados estão sendo jogados; as roletas girando; e nosso dinheiro sendo deixado por lá. E o Brasil, vai ficar de fora? Que girem as roletas também por aqui.
Por Guilherme Scarpellini